Em um mundo cada vez mais digitalizado, ficou mais fácil editar não só nossa aparência, mas também a nossa vida para que tudo fique cada vez mais aesthetic, simétrico e perfeito. Com isso, ficou também muito mais fácil a gente comparar nosso tapete antigo e surrado com a grama sintética recém instalada e verdinha dos vizinhos que a gente pode jurar (dada a grande quantidade de filtros e efeitos) que é natural. Ficou cada vez mais comum sentir a tal da frustração com as partes das nossas vidas que não são instagramáveis, enquanto comparamos o nosso dia a dia e nossos bastidores com o palco de outras pessoas. Isso sem contar que a gente também alimenta esse sistema editando a nossa vida e mostrando só as partes legais. Fica fácil acreditar que tudo é perfeito, mesmo que no fundo a gente saiba que não é bem assim.
Enquanto vemos tantas vidas, fotos, corpos e projetos perfeitos, é comum sentir a necessidade de resetar a nossa existência, começar tudo de novo sendo novas e melhores pessoas. A possibilidade de recomeçar sempre vem como uma excelente alternativa à nossa falta de perspectiva, de desenrolo com os problemas atuais e com a ideia de que tudo vai ser diferente a partir de agora. Essa possibilidade vem acompanhada do sentimento de querer fazer melhor, de uma esperança iludida de deixar para trás quem a gente foi, as coisas erradas que a gente fez, de abandonar toda a confusão que a gente já sentiu, tomar decisões mais acertadas, endireitar nossos passos, encontrar nosso rumo e, enfim, se comprometer com o nosso progresso.
Não me leve a mal. Eu acho importante demais saber a hora de desistir de alguma coisa, de saber se reinventar e recomeçar quando é necessário. Mas acho que também é necessário haver alguma resiliência ou nos tornamos viciadas em recomeçar. Porque recomeçar, muitas vezes, é a alternativa fácil. É a alternativa de quem não sabe lidar com o meio do processo, de quem evita sentir a frustração de não saber como enfrentar novos desafios e de quem prefere o conforto de ser sempre iniciante em alguma coisa – o nível de responsabilidade é menor, as cobranças são menores e a desculpa de estar “só começando” é uma aliada perfeita ao nosso medo de se tornar grande demais. Recomeçar é recurso para quem já tentou de tudo e precisa de novos ares. Não é um recurso para quem tem medo do próximo passo e do quanto esse passo leva para mais fundo e para mais dentro do mar.
Imagine que você está dentro de um barco em alto mar e, embora saiba aonde quer chegar, toda vez que sente que se perdeu você volta para o porto. Você dificilmente vai conseguir chegar aonde quer porque está sempre voltando para o mesmo lugar – o começo. Agora imagine que sempre houve uma bússola em perfeito estado dentro deste barco mas que, por desconfiar da sua capacidade de interpretar o funcionamento dela, você continuou tomando a mesma decisão de voltar para o porto seguidas vezes. Parece insensato, não é mesmo? Mas a gente faz isso em outros contextos e, muitas vezes, sem perceber.
A vontade de começar “do zero” e ter uma trajetória livre de máculas nos impede de perceber que muitas histórias já foram escritas, muitas lições aprendidas e muitas habilidades foram desenvolvidas porque o nosso caminho foi exatamente do jeito que já aconteceu. Por mais que a gente queira jogar uma pá de terra em cima do nosso passado, ele não vai mudar. A gente pode dar sentido a tudo o que já viveu e usar essas bases para construir uma história nova sem precisar desconsiderar o que veio antes, porque o que veio antes permitiu que a gente se tornasse o que é agora – para o bem ou para o mal, não é deletando o seu passado que você resolve o seu futuro, mas fazendo escolhas conscientes no presente.